GAZA
Se estivesse em Gaza, por certo eu estaria entre dois fogos: os morteiros de Israel e a compulsão de escrever. Antes que tivesse as mãos decepadas pelos estilhaços de uma bomba, escreveria um conto descrevendo a trajetória de um míssil. No segundo entre o disparo e a explosão, veria nos olhos de uma criança o assombro, a inquirição sem respostas sobre sua rotina, súbito sob os escombros; se os escombros não a tivessem engolido. Constataria, mais perplexo que medroso, o quanto veloz fora o pensamento de homens e mulheres, mais veloz que o míssil, buscando se lembrar do derradeiro minuto de sossego no prosaico lar.
Os sentidos dos meninos, dos homens, me julgariam tão insano quanto Shimon Peres; um escrevendo sobre estômagos destripados, outro dizendo que a paz é um item do mercado da guerra. Um com o transe da guerra nos olhos vítreos, no lápis gemendo sobre o papel; outro, como seu congênere Hitler, perguntando se Gaza ainda não foi varrida do mapa. A faixa, para Shimon Peres, é um cisco no olho tão incômodo quanto os quase um milhão e meio de refugiados que lá moram; não por opção, por certo, mas como gado tangido. São bárbaros, dirá Peres, lembrando-se dos otomanos; mais ainda porque fabricam mísseis em fundos de quintal, sem o certificado de ISO9000 que a Auduban, Magal e Golan têm; não têm o status, os novos otomanos, de monstros da guerra. Destruam Gaza! Ordena Barak; não o negro de Illinois, mas o chefe do terror, ministro da morte em Israel.
Uma criança me perguntaria, talvez num hebraico nervoso, se o que escrevo dará vida a sua mãe coberta, enterrada num cobertor fiado para ocultar-se das luzes dos tanques genocidas. Não saberia o que dizer, inda que escreva que seus olhos não têm a indiferença dos soldados da morte; têm a inocência dos sentidos, o crime de se moverem. Um míssil assoviaria sobre nossas cabeças, agarro-a, deito-a com brusquidão, a mesma dos tanques em marcha. Olharia para mim, o menino, querendo juntar seu destino ao meu, como se o meu, de adulto, não fosse presa de medos infantis. O míssil explode acolá, a cinqüenta metros de nós. Ele não quer olhar. Meu gesto já lhe diz que a morte fizera-se viva; que se a olhasse, como eu subjugando o medo, sofreria minha censura. Mas quero absorver, nos olhos do menino, a ausência de ódio. Em vez disso, desejo um cancro nas vísceras de Shimon Peres, feito o tumor que pôs fim a Nixon, que também tinha a alma gangrenada.
Outro morteiro explode, corro para me esconder atrás de um pé de azeitona. Seria um alvo fácil, visto que poucas são as árvores nas terras incultas de Gaza. A árvore não dá frutos, renunciara à vida. Não é mais o menino que se intriga com o escritor, é um adulto de roupas frouxas no corpo magro. Quer saber o que escrevo, mas não entendo sua língua. Abraço-o para pedir desculpas por não saber sua língua. Ele não chora mudo, está convulso de medo. Não tenho explicações para dar-lhe. Mostro minhas anotações. Ele se surpreende, tem inveja de mim porque ainda consigo escrever sob a poeira, entre os escombros.
Não tenho as anotações para dar conta do infanticídio em Gaza; tenho a reação impotente ao noticiário do Fantástico, mostrando a guerra como a defesa de Israel contra terroristas suicidas. Os milicianos do Hamas são, por si, maus; cobrem o rosto com máscaras escuras, portam metralhadoras, indícios de propósitos maus, conforme a lente do Fantástico. Não importa se ajudam na alfabetização, na rede de assistência social da faixa; importa amputar o contato que têm com o povo palestino. Mesmo antes de um intervalo, ante a iminente revelação, nunca a tediosa revista da Globo traduziu a sigla para Movimento de Resistência Islâmica; não o fará, não antes de a União Européia, o Canadá, Japão e Estados Unidos retirarem as brigadas do índex; por último, de o sôfrego Estado de Israel renunciar a seus desígnios de anexação.
Os brigadistas cobrem o rosto com uma máscara negra, o que lhes dá uma aura de mistério. O palestino comum, nas fotos e vídeos do noticiário, não os olha como estranhos mascarados; reproduz, ecoa os gritos muçulmanos de afirmação religiosa, de morte aos incréus envoltos na bandeira com a estrela de David.
Em Gaza, numa esquina deserta, há um conto a ser escrito; sob os escombros há um romance. A cidade sobrevive sob o terror, escreve uma epopéia. Perscrutar o silêncio é esperar a morte. Gaza não é Varsóvia, é um gueto cercado por aviões e veículos de terra das tropas neonazistas de Barak. Crianças correm das bombas, catam comida, algumas riem ante o fato de ainda estarem vivas. Se chegarem à idade adulta, por certo entre os um milhão e meio de moradores, haverá alguém com dotes literários. Terá poucos leitores de sua geração, posto que todos viram, viveram a resistência. A literatura será escrita sem a comoção da absorção do sangue em primeira experiência, com letras do fígado apático à dor.
Se eu estivesse em Gaza, escreveria um conto mirando-me nos meninos...
(Marco Albertim, jornalista e escritor)
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